O reino da teologia
O ano 325 encontrou a igreja primitiva enredada numa polêmica inflamada sobre a natureza do Filho de Deus e de seu Pai. Os dois defensores principais nesta disputa eram Alexandre, bispo de Alexandria, e Ário, um ancião ou presbítero da mesma cidade. Considerando-se como uma espécie de bispo universal, Constantino se encarregou de convocar um concílio mundial de bispos na cidade de Nicéia a fim de resolver esta disputa. Ele inclusive dirigiu o mesmo concilio.
Permita-me dar alguns antecedentes sobre a natureza da heresia de Ário discutida no concílio.
A diferença entre “a natureza” e “a ordem”
Desde o primeiro século, a igreja primitiva tinha mantido certas interpretações elementares a respeito do Pai e o Filho. Estas interpretações estavam bem fundadas nas Escrituras. Para compreender os ensinos históricos da igreja sobre o Pai e o Filho, a pessoa tem que entender a diferença entre “a natureza” e “a ordem”. Na Teologia, “natureza” ou “substância” refere-se à essência ou classe a qual pertence uma pessoa ou criatura. Todos os seres humanos são da mesma natureza ou substância. Nenhum homem ou mulher é menos humano do que qualquer outra pessoa. No entanto, os seres humanos se diferenciam uns dos outros no que diz respeito à ordem ou às posições de autoridade. O presidente tem autoridade sobre o vice-presidente. Estas duas pessoas são iguais em natureza, mas se diferenciam em ordem.
Pois bem, a igreja primitiva sempre ensinou que o Pai e o Filho são da mesma natureza ou substância. O Filho não é algo alheio ao Pai. Ele não tem a natureza dos anjos, mas possui a mesma natureza que o Pai. Tanto o Pai como o Filho são igualmente divinos. O Filho possui a verdadeira divindade, assim como o Pai.
No entanto, existe uma diferença de ordem ou autoridade entre o Pai e o Filho. A igualdade de natureza não significa igualdade de ordem. Assim como há uma hierarquia de ordem entre marido e esposa, também há uma hierarquia de ordem dentro da Trindade. Paulo explicou isto ao dizer: “Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo o homem, e o homem a cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo” (1 Coríntios 11:3). O Pai tem autoridade sobre o Filho. O Filho é enviado pelo Pai. O Filho faz a vontade do Pai. E o Filho assenta-se à destra do Pai. Esta hierarquia de ordem não pode ser invertida. Mas esta diferença na ordem de jeito nenhum diminui a divindade do Filho.
Quando os cristões não entendem a diferença entre natureza e ordem, terminam com um entendimento confuso sobre a Trindade. E esse era o problema com o ancião do século IV, Ário. Ele confundiu a natureza e a ordem. Devido à hierarquia de ordem que há na Trindade, Ário erroneamente achou que também há uma hierarquia de natureza ou substância. De modo que ele sustentava que o Filho não é da mesma natureza que o Pai. Ao contrário, dizia que o Filho estava em alguma posição entre os anjos e o Pai.
Como já mencionamos, para esclarecer este assunto, Constantino convocou um concílio mundial na cidade de Nicéia. No entanto, desde a primeira assembléia Concilio de Nicéia, os partidários de Ário logo se deram conta de que iriam perder o debate, já que estavam superados numericamente. Nesse momento, fizeram concessões importantes e pediram tolerância em vista da natureza incompreensível das questões em discussão. Eles inclusive ficaram de acordo a não empregar nenhuma linguagem nem expressões que não aparecessem na Escritura.
No entanto, em vez de se aproximarem de Ário e seus partidários com amor, e com a intenção de acabar com esta divisão teológica na Igreja primitiva, os bispos ortodoxos receberam com desdém suas concessões e suas propostas de reconciliação. Para melhor dizer, os bispos procuraram propositadamente uma resolução que tornasse irreconciliável o racha entre as duas partes.
No entanto, nenhum bispo ortodoxo quis sugerir que o concílio fizesse o que anteriormente tinha sido inconcebível: acrescentar algo à Escritura. De maneira que o concílio se encontrava num impasse. Nesse momento, Constantino interveio novamente para “ajudar” a igreja. Ele sugeriu que os bispos mudassem o simples credo que tinha servido à igreja primitiva durante 300 anos e lhe acrescentassem a palavra homoousian (da mesma natureza), dizendo que o Pai e o Filho eram homoousian. Os bispos logo aceitaram a solução de Constantino e adotaram este novo credo.
Como declaração sucinta da divindade de Cristo e da relação do Pai com o Filho, eu acho que o Credo Niceno é um dos melhores. Este credo expressa fielmente o que os cristões criam sobre o Filho de Deus desde os dias dos apóstolos até o tempo de Constantino.1
Nicéia: Uma mudança decisiva para a Igreja Primitiva
No entanto, Nicéia marca uma mudança decisiva na história cristã, porém uma mudança para o pior. Isso porque o credo niceno introduziu quatro novas corrupções na Igreja que a afastaram mais e mais do reino de Deus e do cristianismo primitivo original.
1. Os perseguidos convertem-se em perseguidores
Após o Concilio de Nicéia, a Igreja primitiva fez correto em excomungar Ário, que era um dissensor que ensinava falsas doutrinas. Nos três primeiros séculos do cristianismo primitivo, o assunto teria concluído aí. No entanto, Constantino foi além e desterrou a Ário de sua cidade natal, de Alexandria, à província da Ilíria, do outro lado do Mar Mediterrâneo. Constantino depois ordenou que queimassem todos os escritos de Ário. E o que é pior: Constantino declarou que qualquer um que fosse surpreendido com escritos de Ário seria executado.2 Em vez de se oporem a estas medidas, os bispos aplaudiram-nas.
Quatorze anos dantes, os primeiros cristãos eram os perseguidos. Agora eles eram os perseguidores. Constantino chegou a achar que a tarefa mais importante do magistrado civil era preservar e apoiar a fé “católica”. Para Constantino, os hereges ou cismáticos que se opusessem à suas ordens não eram outra coisa senão criminosos rebeldes. Com o tempo, ele começou a adotar quase palavra por palavra a linguagem dos decretos de Diocleciano (que tinha iniciado a última grande perseguição contra os primeiros cristãos ) e a aplicar essa linguagem aos vários decretos destinados a reprimir os hereges.3
Este novo tipo de perseguição acabou sendo mais perniciosa em seus efeitos do que qualquer outra levada a cabo pela Roma pagã de anos atrás. Esta nova perseguição, diferente da perseguição pagã, não escolheu como alvo todos os que criam em Jesus como seu Senhor e Salvador, mas sim teve como alvo só aqueles a quem a Igreja institucional chamava de hereges. Na verdade, os arianos eram hereges. Mas isso não justificava que os perseguissem. Além do mais, muitos dos que a Igreja perseguiu após isso não eram hereges, mais sim verdadeiros cristões do reino.
Esta nova perseguição com freqüência não só escolhia como alvo os cristões inocentes do reino, mas também manchava de sangue as mões dos próprios perseguidores cristões, e os arrastava para a conduta depravada do mundo. Os primeiros cristãos começaram a imaginar que podiam empregar os instrumentos de Satanás se o fizessem com um propósito “santo”. Esta nova perseguição tornou muito difícil a possibilidade de a Igreja algum dia ser reformada ou restaurada à sua pureza original, visto que qualquer reformador potencial cedo era chamado de herege e depois silenciado.
Ao instituir a perseguição patrocinada pela Igreja primitiva, o Concílio de Nicéia desfez qualquer bem que poderia ter resultado do Concílio.
2. Indo para além da Escritura
Em muitos sentidos, o impacto que o Concílio de Nicéia teve sobre a teologia foi até mais grave que seu impacto sobre a perseguição. Isso se deveu ao fato de que o Credo Niceno fez com que a ortodoxia dependesse de uma palavra que nem sequer aparece nas Escrituras: homoousian. Esta palavra grega significa “da mesma natureza”, e descreve fielmente a relação do Filho de Deus com o Pai, como já analisamos. Eu não tenho objeção alguma ao uso desta palavra.
No entanto, ao converter uma palavra que nunca se usa na Escritura na pedra de toque da ortodoxia, Nicéia abriu uma caixa de Pandora. Pois, basicamente, o Concilio de Nicéia estava propondo que a Escritura era inadequada. O Concílio propunha que havia verdades essenciais, sem as quais não podemos ser salvos, que não estão expressas de maneira específica nas Escrituras. Em vez de confiarem em Deus e crer que suas Escrituras eram adequadas, os bispos do primeiro Concílio de Nicéia se recorreram a uma solução humana para resolver a controvérsia ariana. E o fruto que se seguiu causou mais dano à Igreja primitiva do que qualquer prejuízo que Ário teria causado.
Já que os bispos tinham ido além da Escritura, eles quase imediatamente viram a necessidade de declarar que a decisão do Concílio de Nicéia tinha sido inspirada por Deus e que era de igual valor à Escritura. Para melhor dizer: estavam afirmando que as revelações especiais não haviam terminado com os apóstolos. Depois de um lapso de mais de duzentos anos, o Espírito Santo supostamente estava novamente dando uma revelação especial do mesmo nível da Escritura. Até nossos dias, a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Oriental declaram categoricamente que os pronunciamentos do Concílio de Nicéia e dos outros chamados concílios ecumênicos têm a mesma autoridade que a Escritura.
Com o passar dos séculos, a Igreja primitiva acrescentou mais e mais termos extrabíblicos ao dogma do cristianismo. Até lhe acrescentaram termos que eram contrários à Escritura. Por exemplo, 460 anos depois, no ano 785 d.C., outro concílio ecumênico, que também se reuniu em Nicéia, fez o seguinte pronunciamento:
Tal como a representação da cruz viva e preciosa, também as imagens veneráveis e santas, tanto em pintura e mosaicos como em outros materiais adequados, devem ser exibidas nas santas igrejas de Deus e nos utensílios sagrados e nas vestimentas. (…)
A estas coisas deve-se dar devida saudação e adoração [no grego: proskineo] honrosa, não a verdadeira adoração de fé [no grego: latria], a qual pertence somente à Natureza Divina. Mas a estas coisas, como a representação da cruz viva e preciosa e ao livro dos evangelhos e aos outros objetos sagrados, se pode oferecer incenso e velas conforme o antigo costume piedoso. Pois a honra que se dispensa à imagem se transmite a quem a imagem representa, e o que adora a imagem adora ao representado nela. (…) De modo que seguimos Paulo, que falou em nome de Cristo, e a toda a companhia apostólica divina e aos santos pais, mantendo as tradições que recebemos. (…)
Saudamos as imagens veneráveis. Temos por anátema os que não fizerem isto. (…) anátema aos que não saúdam s imagens santas e veneráveis. Anátema aos que chamam ídolos às imagens sagradas.4
As Escrituras, como também a igreja primitiva, haviam condenado o uso das imagens. Agora a Igreja condenava os que não usavam imagens.
3. A teologia se torna a essência do cristianismo
Após Nicéia, a Igreja primitiva chegou a achar que a essência do cristianismo é a teologia. A Igreja primitiva acredita que as pessoas podiam ser cristãs simplesmente ao darem a aprovação mental a uma lista de doutrinas… sem uma mudança radical em suas vidas.
E mais ainda: a Igreja primitiva já não estava satisfeita com a teologia elementar do evangelho do reino. Ao contrário, agora esta se concentrava em pontos minuciosos da teologia que o cristão comum provavelmente não chegaria a compreender. De maneira que Nicéia deu origem a um tipo de cristão totalmente novo: o teólogo ou pai da Igreja primitiva. E desde o aparecimento destes teólogos, a Igreja não teve um único ano de paz, livre de polêmicas teológicas.
O bispo do século IV, Hilário de Poitiers, disse: “A semelhança parcial ou total do Pai e do Filho é um tema de discussão para estes tempos convulsos. A cada ano, não, a cada mês, inventamos novos credos para descrever mistérios invisíveis. Arrependemo-nos do que fizemos, defendemos os que se arrependem, anatematizamos aqueles a quem defendemos. Condenamos ou a doutrina dos outros em nós mesmos, ou a nossa própria na dos outros. E, rasgando-nos uns aos outros de forma recíproca, temos sido a causa da ruína de todos”.5
O século IV foi testemunha de vários concílios da Igreja, e as discussões entre os teólogos tornaram-se cada vez mais viciosas. Estes teólogos, sem exceção, não atribuíam a si mesmos outra coisa a não ser virtude e motivos puros, mas não imputavam nada a não ser maldades e motivos ocultos a seus adversários. Ninguém estava disposto a achar que os erros defendidos por seus adversários poderiam ser inocentes ou que sua fé fosse ao menos sincera.
Ninguém era capaz de se aproximar de seu irmão em amor, numa tentativa de ajudá-lo a ver a verdade. Ao contrário, os teólogos só procuravam refutar e condenar seus adversários. Não é de estranhar que um historiador secular romano desse tempo, Amiano Marcelino, dissesse que a inimizade que os cristões sentiam uns pelos outros ultrapassava a fúria das bestas selvagens contra os homens.6
A de haver decorrido um século após Nicéia, a Igreja já achava que o simples fato de estudar a Bíblia não era suficiente para dar a alguém um entendimento correto da fé. Também era necessário estudar os escritos destes novos pais da Igreja e os decretos dos vários concílios da Igreja. Só pelo fato de homem ser devoto e bem familiarizado com as Escrituras não significava que estivesse capacitado para pregar na Igreja. O que importava não era o conhecimento da pessoa sobre o que as Escrituras diziam, mas sim o seu conhecimento do que a Igreja dizia.
Uma vez que o veneno deste “novo cristianismo” fez seu efeito até no mais profundo da Igreja, esta declarou que ninguém, não importava o tanto que fosse piedoso, poderia pregar o evangelho (quer dentro quer fora de uma igreja) sem a autorização oficial da Igreja. Pregar sem uma licença tornou-se um delito punido com prisão e até com a morte.
Esta nova lei não foi necessariamente criada porque a Igreja queria deliberadamente manter o povo nas trevas. Parece-me que os motivos da Igreja eram sinceros. Os pregadores sem licença poderiam acabar entendendo as Escrituras erroneamente e desse modo enganar o povo, fazendo com que perdessem a vida eterna. Mas, novamente, a Igreja estava fazendo uso dos meios humanos para resolver problemas, em vez de confiar nos métodos de Deus.
4. A Bíblia é convertida num livro perigoso
Em seu entusiasmo de adotar definições extrabíblicas e uma teologia complexa, a Igreja terminou convertendo a Bíblia num livro perigoso. A Igreja opinava que os cristões que lessem a Bíblia por conta própria não podiam esperar que chegariam à doutrina “verdadeira”. Tais cristões quase sempre cairiam em heresias. Os primeiros cristãos já não podiam escutar o que o próprio Jesus disse com palavras claras. Em vez disso, tinham que crer no que a Igreja lhes mandava que cressem.
Com o tempo, a Igreja chegou ao ponto de achar que uma pessoa poderia acabar perdendo sua alma por ler e crer nas Escrituras. Em conseqüência disto, em 1229, o sínodo de Toulouse aprovou uma lei canônica que declarava: “Não é permitido aos leigos possuir os livros do Antigo e Novo Testamentos, mas somente o Saltério, o Breviário, ou o Pequeno Oficio da Virgem Bendita. E estes livros não devem estar na língua vernácula”.7
A Bíblia foi convertida num livro perigoso. De algum modo as palavras de Jesus e dos apóstolos já não eram seguras para as pessoas incultas lerem.