Perseguição pela Igreja Católica
Na quarta parte deste livro analisamos em detalhe o híbrido constantiniano: o que a Igreja híbrida cria e como agia. Também vimos como agia o estado “cristianizado”. Nesta última parte do livro veremos como o reino de Deus continuou apesar da queda espiritual da Igreja institucional.
Anteriormente, falamos das origens dos donatistas. E vimos que suas origens não foram particularmente heróicas. Eles queriam os novos benefícios que Constantino estava oferecendo à Igreja institucional. Eles também não vacilaram em pedir ao Imperador que interviesse em sua disputa eclesiástica.
No entanto, acabou sendo uma bênção que todas as decisões judiciais resultassem contra dos donatistas. Pois isto os obrigou a retroceder e a reavaliar em que se convertera a Igreja institucional. Seus olhos foram abertos e viram que a Igreja já não era um corpo santo. Pior, esta se tornara numa instituição mundana que agora promovia os ricos e os poderosos. Em conseqüência disto, os donatistas perderam completamente seu interesse original de obter a aceitação do Imperador. Como o próprio Donato disse: “O que tem a ver o imperador com a igreja?”1 De modo que agora os donatistas começavam novamente a centrar sua atenção no reino de Deus.
O donatismo esteve limitado quase exclusivamente ao norte da África. Ali existiu junto com a Igreja institucional ou católica. No entanto, havia uma diferença notável entre os dois. Os católicos tendiam a ser urbanos, melhor educados e mais ricos. Os donatistas, por sua vez, provinham principalmente dentre os pobres. Nisto, eles se pareceram muito com quase todos os “movimentos do reino” desde o tempo de Constantino até os tempos modernos.
Vivendo o estilo de vida do reino dentro da Igreja
No entanto, seria um erro pensar que os únicos cristões do reino após a época de Constantino eram os que faziam parte de grupos parecidos com os donatistas. Temos que admitir que houve outras igrejas do reino, tais como os novacianos. Mas muitos cristões do reino permaneceram dentro da Igreja Católica.
Embora a Igreja Católica Romana tenha seguido Agostinho na maioria de seus ensinos, não aceitou seus ensinos sobre a predestinação. Por essa razão, em muitos lugares ela continuou ensinando a necessidade de viver em obediência a Cristo. Mas em lugar de apoiar completamente os ensinos do reino de Jesus, a Igreja Católica os relegou ao âmbito do “perfeccionismo”. A Igreja ensinava que só os que queriam ser “perfeitos” tinham que viver literalmente os ensinos de Cristo. Vale mencionar em seu favor que a Igreja incentivou tal “perfeccionismo” cristão, conquanto este permanecesse sob o controle da Igreja. Em conseqüência disto, houve dezenas de milhares de cristões medievais que viveram de maneira muito literal os ensinos de Jesus.
Muitos destes cristões, tais como Francisco de Assis e Tomás de Kempis, seguiram um estilo de vida do reino sob os auspícios de algum tipo de ordem espiritual ou comunidade. Eles viveram vidas calmas de oração, serviço e amor. Outros cristões do reino eram camponeses rurais analfabetos, bem afastados dos centros de poder e da sofisticação mundana. Outras eram donas de casa que viviam os ensinos de Jesus num ambiente familiar.
Logicamente, havia muitas pessoas cuja vida exterior assemelhava-se bastante à dos cristões do reino, mas que não tiveram um relacionamento genuíno com Cristo. Alguns esperavam ganhar sua entrada ao céu vivendo uma vida ascética. Muitos eram hipócritas e impostores. Ainda assim, não faltaram os verdadeiros cristões do reino.
O confronto entre o reino e a Igreja
Como já disse, em geral a Igreja Católica não considerava inconveniente alguém viver uma vida do reino… desde que essa pessoa não fizesse nada que perturbasse o sistema religioso existente. No entanto, quando os cristões do reino começavam a pregar a mensagem do reino ou tentavam reformar a Igreja, o martelo da Igreja era duro com eles.
Um exemplo disto foi o de Arnaldo de Brescia, um clérigo italiano que tentou reformar a Igreja mundana do século XII. Ele defendia que todos os membros do clero, desde o Papa até o sacerdote do povo, deviam viver como viveram os apóstolos. Ele chamou alguns do clero de cambistas “e covis de ladrões”. Também condenou o sistema papal por ter perdido a visão total da verdadeira missão apostólica. Arnaldo pregava que a Igreja devia se despojar de todo o poder secular e se dedicar exclusivamente ao evangelho de Cristo.2
Qual foi a reação da Igreja? O Papa mandou enforcar a Arnoldo e depois queimá-lo. Suas cinzas foram lançadas ao Rio Tibre que passa por Roma.
Quase ao mesmo em tempo que Arnaldo se encontrava pregando em Itália, um pobre sacerdote aldeão se encontrava viajando descalço através de todas as cidades e povoados do sul da França, pregando o reino de Deus. Pedro de Bruys, como se chamava, atraiu uma grande multidão de seguidores dentre os pobres. Ele ensinava que os templos eram um desperdício extravagante. A igreja, dizia ele, é uma comunidade espiritual que não precisa de edifícios para existir. Também ensinava que as obras feitas em benefício dos mortos eram inúteis. Além disso, pregava contra a missa romana e as orações repetitivas. Pedro de Bruys dizia a seus ouvintes que não deviam venerar ou adorar a cruz nem as imagens. Na realidade, o que fazia era incentivá-los a destruírem qualquer objeto de idolatria.3
Pierre lia os quatro evangelhos aos seus ouvintes e pregava-lhes o verdadeiro reino de Deus. Infelizmente, alguns de seus seguidores não abraçaram completamente a doutrina da não-resistência. Estes destruíram altares e imagens, queimaram crucifixos e destruíram igrejas. Tal como a maioria dos mestres do reino durante a Idade Média, Pierre acabou sendo queimado por seus adversários católicos.
Um último exemplo de pregador medieval do reino foi Henrique de Lausanne, que viajou por todo o norte da França no começo do século XII, pregando o reino de Deus. Ele não só pregava a mensagem do reino, mas também atacava fortemente clero rico. Ele dizia a seus ouvintes que não assistissem às igrejas católicas. Suas pregações e censuras inflamadas atraíram a uma grande quantidade de partidários dentre os pobres. Finalmente, a Igreja usou o poder da nobreza para expulsar a Henri do norte da França.
Depois Henri viajou através do sul da França e o norte da Itália, animando os cristões em todas as partes a que regressassem à simplicidade dos apóstolos e da igreja primitiva. Em lugar de se fiar na autoridade da Igreja, Henri citava o Novo Testamento como sua única autoridade. Ele dizia aos cristões que deviam confessar seus pecados uns aos outros. Não era preciso obter penitência nem absolvição de um sacerdote. Milhares e milhares dentre os pobres responderam à mensagem de Henri e centraram suas vidas em Jesus e seu reino.
Aproximadamente em meados do século XII, Henrique de Lausanne desapareceu dos arquivos históricos. Se ele foi capaz ou não de se manter a salvo dos caçadores de hereges e continuar pregando, não o sabemos. No entanto, o que, realmente sabemos é que suas pregações deram muito fruto.4
Traços comuns
Quer tenham sido indivíduos discretos ou membros de um dos movimentos medievais do reino, os cristões do reino durante a Idade Média em geral tiveram dois traços em comum:
Em primeiro lugar, a vasta maioria deles procedia das classes pobres e incultas. Não é de estranhar que Jesus dissesse: “Bem-aventurados os pobres”. Eles tinham pouco interesse neste mundo, de maneira que era pouco o que tinham que deixar para trás. De fato, o reino dos céus verdadeiramente lhes pertencia. Afastados de toda sofisticação e minuciosidades teológica, puderam ver a mensagem singela do reino que aparece tão claramente nos evangelhos. Como Jesus disse: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos” (Mateus 11:25).
Em segundo lugar, eles derivavam sua autoridade unicamente do Novo Testamento, direto dos ensinamentos de Jesus, em especial. Alguns dos cristões do reino tiveram uma formação teológica formal, mas a maioria não. Em geral, estes cristões do reino liam e escutavam repetidamente os ensinamentos de Jesus, e os punham em prática muito literalmente.
E é exatamente nisso que consiste, desde seus inícios, o cristianismo do reino.