Constantino e o evangelho do reino de Deus

Até aqui vimos o que Jesus e seus apóstolos ensinaram, e vimos como a igreja primitiva, durante quase trezentos anos, seguiu o ensino de Jesus de forma muito literal. No entanto, estes ensinos não são praticados hoje pela maioria dos cristões. O que aconteceu então?

Durante os últimos quarenta anos do século III (desde aproximadamente o ano 260 ao 300 d.C.), a igreja primitiva desfrutou de um tempo de paz sem precedentes. Houve perseguições locais esporádicas, mas não uma perseguição em grande escala no Império. Isto pareceu uma bênção para a igreja primitiva exausta e acossada que sobrevivera onda após onda de perseguição violenta desde o tempo de sua fundação.

No entanto, a igreja primitiva começava a perder seu primeiro amor. Em conseqüência, a igreja primitiva esqueceu que Jesus disse que é uma bênção quando somos perseguidos. A igreja primitiva começou a baixar a guarda. Com a perseguição fora de suas mentes, os primeiros cristãos começaram a contender uns com os outros. A teologia (além dos pontos elementares) sempre tinha sido algo secundário para a igreja primitiva, mas agora passou para a vanguarda. Surgiram violentos debates teológicos surgiram através de todo o Império.

Os primeiros cristãos também esqueceram as palavras de Jesus sobre o poder eclesiástico: “Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são estes dominados, e que os grandes exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal; E, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo” (Mateus 20:25–27). Em lugar de desejarem ser servos de todos, os bispos das principais cidades do Império (Roma, Antioquia e Alexandria) começaram a fazer manobras para obterem o poder. O bispo de Roma começou a afirmar que era o sucessor de Pedro e que ele tinha jurisdição sobre todas as outras igrejas.

Os primeiros cristãos também começaram a perder a doutrina da separação do mundo. A disciplina começou a relaxar, principalmente em Roma. Pela primeira vez na História, os primeiros cristãos começaram a assumir posições governamentais. No entanto, a igreja primitiva do ano 300 d.C. era ainda bem mais disciplinada e estava mais separada do mundo do que a grande maioria das igrejas de hoje. Mas tinha decaído consideravelmente do que antes havia sido.

De repente, a paz de quarenta anos chegou a seu fim, pegando desprevenida a maioria dos primeiros cristãos . No ano 303, o Imperador Diocleciano iniciou a perseguição mais devastadora que a igreja primitiva jamais passara. As casas de oração dos primeiros cristãos eram queimadas em todas as partes, e as Bíblias eram combustível para as fogueiras. Os soldados encarceravam à força homens e mulheres e os torturavam as torturas mais horríveis pudessem conceber suas mentes torcidas. Apesar de que muitos primeiros cristãos cederam durante esta perseguição, a igreja primitiva em geral permaneceu firme. Embora tivessem perdido parte de seu zelo pelo reino, os primeiros cristãos ainda estavam dispostos a morrer por seu Rei.

A perseguição continuou golpeando os primeiros cristãos durante oito longos anos, mas o governo não pôde destruir a igreja primitiva. Por fim, o reino de Deus prevaleceu. Não foi uma batalha fácil, mas os primeiros cristãos mostraram a Satanás que ele não poderia derrotar o reino de Deus por meio da força bruta. Esgotado, o Imperador Diocleciano promulgou o edito de Tolerância no ano 311, o qual pôs fim à perseguição. Ao admitir a derrota, o imperador pediu aos primeiros cristãos que orassem por ele. Depois o imperador deixou seu cargo e mais tarde suicidou-se. Satanás foi derrotado!1

Mas, será que foi mesmo? O que a igreja primitiva não sabia era que Satanás tinha mais uma arma em seu arsenal: a astúcia. Se ele e o mundo não podiam destruir o reino, se uniriam ao mesmo. Ou melhor dizendo, com astúcia seduziriam os primeiros cristãos para que se unissem a eles.

Constantino e O edito de Milão

No ano 312, os primeiros cristãos receberam algumas boas notícias. Constantino, um dos co-regentes que substituiu a Diocleciano, tinha derrotado o seu adversário, Maxêncio, em Roma. Isto era uma boa notícia porque Constantino era favorável aos primeiros cristãos . Para melhor dizer, durante a perseguição diocleciana, os primeiros cristãos que viviam nas regiões sob o controle de Constantino foram protegidos da maior parte da perseguição.

O ano 313 trouxe melhores notícias ainda. Constantino e seu co-regente, Licínio, proclamaram um novo edito que pôs o cristianismo primitivo ao mesmo nível de todas as outras religiões. Este edito, conhecido como o edito de Milão, dizia: “[Decidimos] conceder tanto aos primeiros cristãos como a todos os homens a liberdade de seguir a religião que eles escolherem, de maneira que qualquer divindade celestial que exista possa estar disposta a nos ajudar e a todos os que vivem sob nosso governo”.2 Outros decretos de Constantino e Licínio foram mais tolerantes ainda. Qualquer propriedade confiscada dos primeiros cristãos durante a perseguição diocleciana devia ser devolvida a eles. Além disso, todas as casas de oração que tinham sido queimadas ou destruídas durante a perseguição seriam reconstruídas às custa do dinheiro público.

O edito de Milão não converteu o cristianismo primitivo em igreja estatal. Este somente instituiu a liberdade de religião no Império Romano. No entanto, pouco depois, Constantino adotou uma política indubitavelmente pró-cristã para a região do Império Romano que ele governava. (Licínio, seu co-regente, ainda governava a maior parte oriental do Império.) Um historiador da Igreja do século IV, Eusébio, que foi completamente absorvido por tudo isto, descreve as ações de Constantino:

O imperador piedoso, gloriando-se na confissão da cruz vitoriosa, proclamou o Filho de Deus aos romanos com grande ousadia de testemunho. (…) Na realidade, todos, a uma só voz, declararam que Constantino tinha aparecido pela graça de Deus como uma bênção geral para a humanidade. (…)

O imperador, além do mais, procurou pessoalmente a companhia dos ministros de Deus. Ele os distinguiu com o maior respeito e honra possíveis. Mostrou-lhes graça tanto em palavras como em atos, como a pessoas consagradas ao serviço de seu Deus. Conseqüentemente, eles eram admitidos em sua mesa. (…) Ele também os converteu em seus companheiros de viagem, achando que assim Deus o ajudaria, já que eles eram seus servos.3

“Bênções de Constantino” para a Igreja Primitiva

Em questão de poucos anos, os primeiros cristãos passaram de uma minoria perseguida para serem os favoritos da corte. Lamentavelmente, este favor governamental não chegou sem pedir algo em troca. Quando um governo decide ajudar o cristianismo de alguma maneira, em geral essa ajuda vem acompanhada da participação do governo na Igreja primitiva.

Por exemplo, mencionei que Constantino tinha decretado que as casas de oração que foram destruídas durante a perseguição deveriam ser reconstruídas à custa do dinheiro público. Visto que o Estado estava fornecendo os fundos, Constantino logicamente achou que o estado tinha certo direito de decidir como seriam as novas casas de oração.

Constantino desejava sinceramente promover o cristianismo através de todo o império. No entanto, ele era um homem não regenerado, um homem do mundo. E, logicamente, a única maneira em que poderia promover o cristianismo era através de meios humanos. Ele tinha a certeza de que as anteriores casas de oração dos primeiros cristãos seriam insuficientes para alojar as grandes multidões de pessoas que iriam à primitiva agora que ele, o imperador, estava promovendo o cristianismo. De maneira que proclamou um estatuto que exigiu que os lugares de adoração cristã através de todo o Império fossem ampliados consideravelmente. E não só isso, ele pôs a construção destes novos templos sob a direção dos governadores provinciais romanos.4

Aliás, Constantino decidiu que os edifícios não somente deveriam ser maiores, mas também mais suntuosos. Por que os lugares cristões de adoração tinham de ser meras casas ou simples construções quando os templos pagões estavam tão decorados? Não deveria ser tudo o contrário? Não deveria ser a religião verdadeira a que tivesse as construções mais impressionantes? Seguindo este raciocínio humano, Constantino ordenou que as novas igrejas fossem decoradas com colunas impressionantes e tetos abobadados. Ele dispôs para que muitas delas tivessem fontes formosas e elegantes pisos de mármore. Constantino desejava que fosse difícil para um incrédulo passar em frente a uma igreja cristã sem ser tentado a se entrar no edifício para ver mais da sua beleza.

Constantino devaneou seus sentidos pensando em outras formas de “abençoar” a Igreja primitiva. Pois cria sinceramente que se abençoasse a igreja primitiva, Deus abençoaria o Império.

Muito cedo, Constantino se deu conta de que a maioria dos bispos e anciões da igreja primitiva cristã viviam na pobreza. Ele não achava que isto fosse conveniente para os representantes do único Deus verdadeiro. De maneira que começou a pagar salários aos bispos e idosos à custa dos fundos do Estado. Inclusive, chegou a dar uma de suas residências, o Palácio Laterano, ao bispo de Roma e a seus sucessores. Constantino também isentou a todos os bispos, anciões e diáconos do pagamento de impostos. Além disso, isentou a todas as igrejas do pagamento de impostos sobre propriedade. Levando-se em conta que os impostos romanos eram muito altos (e que até aumentaram ainda mais durante o reinado de Constantino), estas isenções de impostos vieram a ser um benefício considerável.

E o melhor de tudo foi que o estado concedeu todos estes salários e isenções de impostos sem exigir compromissos em troca. Ou ao menos era o que parecia.

Os donatistas e Constantino

Na África do Norte, ocorreu uma ruptura na igreja primitiva com relação à questão dos líderes da igreja primitiva que tinham transigido durante a perseguição diocleciana. Com o tempo, aqueles primeiros cristãos que se negaram a se relacionar com os líderes que tinham transigido passaram a ser conhecidos como donatistas. Os outros foram conhecidos como católicos. Em conseqüência desta divisão, houve dois bispos, dois grupos de anciões e dois corpos de crentes em Cartago, África do Norte: os donatistas e os católicos. Cada um afirmava ser a igreja legítima nessa cidade.

No passado esta polêmica teria sido um assunto puramente interno da igreja primitiva. Mas as “bênções” de Constantino à igreja primitiva criaram um problema de dimensões completamente novas. Qual bispo receberia o generoso salário oferecido pelo Estado? Qual bispo e qual grupo de presbíteros seriam isentos do pagamento de impostos? Qual bispo estaria a cargo da nova igreja suntuosa que tinha sido reconstruída com o dinheiro do Estado?

O governo de Constantino inicialmente reconheceu Ceciliano, o bispo católico, como o legítimo bispo de Cartago. De maneira que Ceciliano passou a receber o salário do estado, e ele e todos os do seu clero foram isentos do pagamento de impostos. Indignados com isto, os donatistas redigiram uma queixa que apresentaram ao procônsul da África, afirmando que eles eram a igreja legítima de Cartago. O procônsul apresentou a queixa a Constantino. Sem saber o que fazer, Constantino designou o bispo de Roma para que examinasse o caso. Como era de esperar, o permissivo bispo de Roma ficou do lado do bispo católico, Ceciliano, que era seu amigo.

Achando que não tinham recebido um julgamento justo, os donatistas pediram a Constantino que designasse alguém mais imparcial para ouvir o caso. Então Constantino convocou um concílio de bispos na província da Gália (atual França) para ver o caso. O concílio reuniu-se em Arles no ano 314, e uma vez mais eles decidiram a favor dos católicos. Os donatistas, por sua vez, apelaram uma vez mais a Constantino. Nesta ocasião, Constantino em pessoa escutou o caso e também decidiu a favor dos católicos.

A polêmica dos donatistas criou um precedente, a partir do qual o imperador romano se sentiu no direito de convocar os concílios da Igreja primitiva e inclusive de julgar e decidir os assuntos da Igreja. O muro entre a igreja e o Estado tinha se desmoronado em grande parte. Agora os cristões estavam dispostos a misturar os assuntos do reino de Deus com os assuntos deste mundo.

Constantino, o novo bispo

Constantino nomeou cristões para que ocupassem altos cargos do governo porque ele achava que Deus abençoaria seu mandato se seu governo fosse formado por cristões. Ironicamente, só poucos anos dantes, Lactâncio dissera: “Deus talvez tenha conferido a seu povo [i.e., aos cristões] tanto riquezas como reinos, ao igual que o fez anteriormente com os judeus, dos quais somos seus sucessores e sua posteridade. No entanto, ele deseja que os cristões vivam sob o poder e o governo de outros, para que não se corrompam por causa da felicidade da prosperidade, caiam na luxuosidade e com o tempo recusem os mandamentos de Deus. Pois isto é o que nossos antepassados fizeram”.5

Tal como Lactâncio tinha predito sem querer, uma vez que os primeiros cristãos chegaram ao poder, eles se corromperam, caíram na luxuosidade e com o tempo recusaram os mandamentos de Deus.

Àquelas alturas, Constantino considerava-se a si mesmo o “bispo dos que estavam fora da Igreja”. Isto é, os bispos da Igreja eram responsáveis por pastorear os que estavam na Igreja, e Constantino era responsável de ser o pastor espiritual dos que estavam fora da Igreja. Como bispo secular, Constantino promulgou um decreto que proibia os servidores públicos do governo oferecer sacrifícios aos ídolos ou praticar a adivinhação.

Porém, cedo Constantino começou a considerar-se a si mesmo também como o chefe ou o “bispo universal” dos que estavam dentro da Igreja.

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